Um exemplar da espécie sapo-pingo-de-ouro, umas das maravilhas da nossa biodiversidade. Foto_SPVS
Os limites da natureza são um fato, real e incontestável. Atingimos a cifra de oito bilhões de seres humanos no planeta e nunca houve tanta pressão sobre os bens oferecidos pela natureza como nos últimos dois séculos. A despeito das evidências de que já ultrapassamos, em muito, o ponto de equilíbrio entre a exploração dos recursos naturais, no conjunto de nossas práticas, seguimos por um caminho de enormes inconsistências, no qual as condições para manter e melhorar a qualidade de vida das pessoas de forma continuada vêm sendo duramente comprometidas e ameaçadas.
É sabido que os incontáveis serviços ecossistêmicos prestados pela natureza são a base que sempre utilizamos para desenvolver nossa sociedade. Embora criticamente relevantes, esses suprimentos de ativos, oferecidos pelas áreas naturais, ainda são percebidos como uma oferta graciosa, plenamente disponível, e que não demanda maiores cuidados. Ao contrário: estamos cada vez mais abrindo mão de seus serviços, num esforço de supressão de remanescentes naturais dentre muitas outras ações de degradação. Essa segue sendo a fórmula para ampliar as diferentes formas de exploração econômica e avançar na geração de riquezas.
De fato, nas regras atuais, os insumos que vêm da natureza, em grande parte, são utilizados de forma ilimitada e sem uma avaliação mais criteriosa que permita a sua manutenção, de qualidade e quantidade, ao longo do tempo. Embora estejamos imersos em constatações fáticas de que essa forma de desenvolvimento não é viável, na prática, não está sendo adequadamente contestada a condição de estarmos nos alimentando das sementes a serem utilizadas na próxima estação. Ao assumirmos esse risco, tudo indica que o prognóstico para as gerações presentes e futuras encerra um cenário de enormes e crescentes dificuldades.
A tal da “sustentabilidade”, premissa que se transformou num movimento de grande envergadura em muitos setores dos negócios, representa uma busca um tanto utópica e que não é correspondente com as práticas usuais observadas no atual mercado. Premissas que apostam isoladamente no importante incremento de novas tecnologias que permitam racionalizar o uso de recursos naturais e mitigar impactos de seu uso e geração de rejeitos, embora relevantes e necessárias, não podem ser consideradas a única forma de proporcionar uma condição de equilíbrio entre os negócios e as condições de suporte dos serviços ecossistêmicos dos quais necessitamos.
Após mais de 20 anos em processo de restauração, a Reserva Natural Guaricica foi reaberta para visitas guiadas em 2021. A reserva fica na maior área de Mata Atlântica do mundo, no município de Antonina, litoral norte do Paraná. Foto SPVS_ Divulgação
Sem desvalorizar os avanços tecnológicos, muito relevantes em diversos setores da economia, como meio de minimizar os impactos ambientais, evidencia-se, ao longo do tempo, uma contínua e crescente pressão sobre o meio ambiente. Não basta gerar avanços tecnológicos sem uma atenção devida a questões ambientais de ordem global que nos afetam de forma cada vez mais intensa. A condição de pouca atenção e investimentos na proteção efetiva de uma fração suficiente de nosso patrimônio natural é uma das principais causas do incremento dos fenômenos relacionados às mudanças climáticas e gera um processo intenso e descontrolado de perda da biodiversidade.
A própria iniciativa de adjetivar o desenvolvimento com o termo “sustentabilidade”, nos permite inferir a existência de um cenário no qual as práticas usuais não são compatíveis com a correta gestão das consequências negativas decorrentes de agressões sobre o meio ambiente. É necessário admitir que o conjunto de ações que realizamos para produzir serviços e bens de consumo não vem sendo controladas a ponto de evitar as sérias consequências decorrentes da degradação ambiental. Ademais, a premissa da “sustentabilidade” acabou incorporando uma enorme quantidade de práticas inconsistentes e sem métricas adequadas, que acabaram por desvalorizar de forma determinante a intenção original dessa iniciativa.
O alerta vindo das duas Conferências das Partes realizadas no ano de 2022 (COP do Clima e COP da Biodiversidade) reitera o cenário de emergência global em que todos nós estamos inseridos.
Não existem mais dúvidas sobre os efeitos devastadores das alterações ambientais causadas pelos humanos no planeta. Não apenas a partir de teorias e constatações científicas que vêm sendo colocadas a público faz tempo. Mas também, em especial, em função dos efeitos catastróficos, visíveis e danosos, que já são contabilizados de forma abrangente em praticamente todos os países do mundo.
Uma percepção mais acurada sobre as consequências decorrentes dos desequilíbrios ambientais, na forma de perdas substanciais de ordem econômica e social, são, certamente, a maior arma de que dispomos para assumir uma postura adequada que permita uma reversão do quadro bastante crítico no qual estamos inseridos. No entanto, parece evidente que são necessárias articulações mais fortes para a geração de um processo amplo que proporcione adequações que nos permitam desenvolver sem destruir.
A indicação explícita de emergência apontada pelas autoridades especializadas no tema, que apontam para um enfrentamento em grande escala destas ameaças, traz a necessidade de medidas mais ágeis e de amplitude suficiente para gerar mudanças concretas de cenários. Nos acostumamos a festejar iniciativas inovadoras de pequeno alcance e que, de certa forma, anestesiam a sociedade com uma falsa percepção de que estamos realmente avançando. Embora louváveis e parte da solução, não fazem qualquer sentido ações de sucesso que não se tornam políticas públicas abrangentes e incorporadas como um novo normal por todo conjunto da sociedade.
É evidente que, apesar de todas as evidências presentes, o longo processo de educação, a ser incrementado de forma ampla, tem perspectivas de mudanças de comportamento em mais longo prazo. O que permite concluir que a monetização dos serviços ecossistêmicos que pode ser implementada das mais diversas formas, representa um caminho bastante efetivo para amparar a luta contra as mudanças climáticas e a perda da biodiversidade, com melhores condições de apresentar resultados em menos tempo.
Precisamos incorporar um entendimento comum de que produzir natureza custa dinheiro. Manter áreas naturais, que são as fábricas que produzem os serviços ecossistêmicos, é parte integrante de um compromisso a ser assumido por todos os governos, por todos os negócios e por toda a sociedade. Seja no cumprimento da legislação e na busca de seu incremento, seja a partir de medidas adicionais e voluntárias que incorporem o custo da natureza das diferentes atividades econômicas praticadas.
Usamos da natureza para desenvolver nossas atividades pessoais e corporativas. O valor do uso da água, da energia, da emissão de gases de efeito estufa e a geração de outros tipos de poluição, além do impacto que causamos diretamente sobre áreas naturais, é atualmente calculável e precisa ser assumido como parte de nossas despesas correntes. Essa é uma premissa que representa uma mudança de postura extremamente relevante para gerar soluções concretas frente aos desafios globais que estamos vivendo. Chegou a hora de reconhecer o custo da natureza e de seus serviços ecossistêmicos, insumos até aqui ainda presentes. Mas que podem deixar de existir e gerar custos em escalas tão altas que poderão não só nos colocar em situações de perda das condições básicas na qualidade de vida, como também inviabilizar boa parte dos negócios.
Não se trata mais de uma agenda baseada em práticas eventuais a partir de iniciativas esporádicas. Estamos diante de uma premissa na qual assegurar a manutenção e a qualidade de áreas naturais, em proporção suficiente, representa fundamentalmente um seguro obrigatório para evitar que as ameaças presentes avancem para uma condição totalmente fora de controle.
Clóvis Borges é diretor-executivo da SPVS (Sociedade de Pesquisa em Vida Selvagem e Educação Ambiental).