Uma das maiores colaborações recentes em prol da conservação da natureza foi o termo “produção de natureza”, que enfatiza diretamente a condição existente nas áreas bem protegidas e com alta biodiversidade de produzir insumos dos quais não podemos abrir mão como, por exemplo, a água_Reginaldo Ferreira
Nossa percepção de desenvolvimento convencional está baseada em processos continuados de crescimento, no aumento da produção, na criação de empregos e no incentivo à criação de novos negócios. Uma agenda de toda a sociedade, em tese, com uma perspectiva comum de melhorar a qualidade de vida, gerar riquezas e prosperidade. Para perseguir esses objetivos usamos como matéria prima os insumos ao nosso redor – que estão à nossa disposição e são oferecidos pela natureza.
A evolução dos negócios permitiu o alcance de produção em escala cada vez maior, seja por meio de ações básicas de extrativismo, seja pela implantação de atividades voltadas à agricultura e pecuária ou no beneficiamento de produtos primários através da industrialização e na busca contínua por novas tecnologias. Tudo com a premissa de que precisamos crescer para resolver nossas demandas, em geral reprimidas, de aporte de uma condição mais favorável à população.
Embora não estejamos tendo sucesso no enfrentamento da enorme disparidade que perdura entre os diferentes atores da sociedade na busca por melhores condições de vida, é inquestionável nosso poder de transformação de insumos da natureza em recursos econômicos, que movem a engrenagem do desenvolvimento. Os números não deixam dúvidas em relação ao sucesso alcançado na produção em grande escala, que gera riquezas e proporciona uma tendência de manutenção crescente, decorrente de incentivos governamentais e investimentos privados.
Em especial nas últimas décadas, percebemos uma intensa transformação de nosso território – no Paraná e no Brasil. Abrimos mão das áreas naturais para a ocupação de cada vez mais espaços na implantação de atividades econômicas, urbanas e rurais. O atual momento de ampla degradação de espaços naturais observados no Bioma Cerrado e Amazônia já foi vivido, há poucos anos, na Mata Atlântica, onde gigantescas porções de território foram transformadas em plantações, indústrias e cidades. Numa avaliação corrente, uma ação necessária para a geração dos resultados esperados pela sociedade – o custo do desenvolvimento justificou e segue justificando a supressão de cada vez mais áreas naturais.
Com o passar dos anos, as populações que vivem nas regiões que foram submetidas a essa condição de alterações bastante radicais da paisagem, vêm percebendo que nem tudo funciona como o discurso genérico de desenvolvimento preconiza. Fatores globais de desequilíbrio ambiental e suas consequências cada vez mais evidenciadas passaram a fazer parte de nosso dia a dia. Quando agregados, a perda da biodiversidade e as mudanças climáticas podem gerar um conjunto de fenômenos que desafiam a continuidade de nossa forma de usar os recursos naturais e manejar nosso território. A degradação das áreas naturais e o excesso de emissões de gases de efeito estufa, passam a representar um desafio civilizatório a ser mais bem compreendido, juntamente com um cenário de desigualdades pouco afetado com as práticas atuais, no momento em que alcançamos o impressionante número de oito bilhões de habitantes no planeta.
Dentro de uma perspectiva negacionista bastante reticente, a manutenção de áreas naturais bem conservadas está desarticulada das prioridades que poderiam permitir investimentos e promoção de medidas que são fundamentais para reverter o declínio do que a natureza, há muito pouco tempo, nos oferecia de forma generosa e, aparentemente, infindável: todos os recursos necessários para o nosso desenvolvimento. A condição de exploração ilimitada da natureza está em cheque e, apesar de nossa impertinência arriscada em não aceitarmos a realidade posta, gera elevados e crescentes custos sociais e econômicos, notadamente nas faixas menos favorecidas da sociedade.
O advento da adjetivação do desenvolvimento, que pegou força no início da década de 90, gerou um movimento virtuoso que defende até hoje a tese de que os negócios demandam uma busca pela sustentabilidade. Em outras palavras, temos afirmado, nos últimos 30 anos, que os negócios precisam reverter seus impactos negativos no âmbito social e ambiental para estarem alinhados a princípios aceitáveis de desenvolvimento. E muita evolução positiva foi obtida a partir dessa nova premissa, notadamente a partir de novos processos tecnológicos que permitiram uma gestão de sucesso para garantir um menor impacto em alguns setores da economia.
A “tal da sustentabilidade”, no entanto, também se acomodou na prática de discursos pouco consistentes. A comemoração excessiva de ações pontuais, sem suficiente abrangência e que, portanto, não apresentam um resultado capaz de reverter as condições de ineficiência das atividades econômicas, decorrentes do passivo que geram, aliados aos resultados econômicos no curto prazo, demonstram um cenário de inadequação ainda preponderante na nossa forma de explorar na natureza. Tudo indica que a fantasia da sustentabilidade, exposta a público sem critérios mais consistentes, a bem da verdade, colocou para debaixo do tapete o que efetivamente precisa ser enfrentado para uma mudança real de cenários.
Já não cabe uma alegação de que a ignorância e a falta de mecanismos mais concretos justifiquem nossa rejeição para um alcance suficiente, capaz de promover as condições de reversão da degradação ambiental do planeta. São plenamente disponíveis os procedimentos técnicos a serem colocados em prática, com ações consistentes na busca de um melhor equacionamento entre nossas ações de desenvolvimento e a pauta da conservação do patrimônio natural, como parte indissociável dos negócios.
As resistências por mudança, mesmo que emergenciais, são bastante evidentes, apesar das constatações crescentes de consequências negativas de nossa forma de explorar a natureza, que se agravam ano a ano. Obviamente os padrões estabelecidos para a geração de riquezas, mesmo que acarretem enormes prejuízos ambientais e sociais, e que acabam sendo coletivizados, são de difícil enfrentamento. Ninguém está disposto, a princípio, a partilhar da responsabilidade de resolver o problema, se isso implicar em rediscutir suas próprias ações e estabelecimento de limites que hoje não são respeitados.
Certamente o discurso de que a conservação da natureza é um elemento que impede o desenvolvimento, uma retórica incutida em boa parte da sociedade, representa uma das mais importantes barreiras para essa imperiosa reaproximação da sociedade com uma medida suficiente e necessária de proteção de seu patrimônio natural. Devemos reconhecer que nossa arrogância e inconsequência permitem que não existam movimentos suficientes para que uma mudança de percepção passe a preponderar. Sem um entendimento mais adequado do papel das áreas naturais bem conservadas em meio a nossas expectativas de evolução como sociedade, continuaremos seguindo por um caminho que agrega riscos e prejuízos que não são parte de uma ficção gerada pelos verdes radicais.
Aparentemente os amplos insumos científicos que demonstram de forma categórica os efeitos convergentes da perda da biodiversidade e das mudanças climáticas não estão gerando o efeito necessário. Está claro que não basta haver conhecimento suficiente para identificar um problema, bem como saber como solucioná-lo, se a sociedade simplesmente se recusa a admitir essa necessidade. Uma resistência bastante bem articulada está presente em nosso meio para permitir a continuidade das ações mais relevantes em termos de impacto ao meio ambiente, basicamente por estarem vinculadas aos setores da economia tão influentes que já conseguem manobrar as gestões públicas e a opinião da sociedade, a partir de retóricas que seguem sendo preponderantes frente ao desafio de gerar mudanças.
Sair da esfera científica e do apelo convencional da “conservação pela conservação” tem sido uma das práticas positivas que tem a possibilidade de mudar a condição de insolvência na qual estamos posicionados no que se refere ao tema da perda de biodiversidade. Uma das maiores colaborações recentes nesse sentido foi a criação do termo “produção de natureza”, que enfatiza diretamente a condição existente nas áreas bem protegidas e com alta biodiversidade de produzir insumos dos quais não podemos abrir mão. Embora os serviços prestados pela natureza sejam inúmeros, a água é um destes produtos mais evidenciados, originados das áreas naturais bem conservadas, e, em parte, melhor entendidos pela sociedade atualmente. A proteção de mananciais está diretamente relacionada com a resiliência a eventos extremos proporcionados pelas mudanças climáticas, cada vez mais frequentes e severos. Nesse sentido, pode ser mais fácil argumentar a necessidade de investimentos econômicos para a efetiva proteção de áreas naturais que circundam as cidades.
Evitar as explanações mais complexas sobre como funciona a natureza e quais são seus agregados sociais e econômicos passa a ser uma demanda premente. Cabe a exploração de um cenário mais fluido de fácil entendimento, agregado ao abandono do generalismo de expressões como “sustentabilidade”, para uma agenda determinada em busca de modelos de “economia restaurativa”, que insere as áreas naturais bem conservadas no íntimo de nossas atividades econômicas – um pressuposto básico e fundamental para o desenvolvimento. Políticas públicas que estejam determinadas a gerar resultados em escala nesse campo só serão efetivadas se ocorrer uma pressão da sociedade como um todo nessa busca por mudanças que assimilem definitivamente a natureza em nossa pauta de prioridades máximas, mesmo que muito tardiamente.
Se conseguirmos mudar o modelo mental da sociedade, que ainda enxerga a natureza como um empecilho ou um elemento lúdico de baixa relevância, evidenciando esse ativo como um grande motor capaz de manter os insumos básicos que são necessários para a nossa qualidade de vida e continuidade de nossos negócios, possivelmente poderemos ter um maior envolvimento de todos numa mudança de cenário tão premente. A natureza – grandemente afetada pelas nossas mãos – é parte dos negócios e, portanto, necessita ser vista como um insumo fundamental e demandador de proteção e de investimentos suficientes para que continue produzindo.
Clóvis Borges é diretor-executivo da Sociedade de Pesquisa em Vida Selvagem e Educação Ambiental (SPVS).