* Artigo de opinião escrito por Clóvis Borges (diretor executivo da Sociedade de Pesquisa em Vida Selvagem e Educação Ambiental – SPVS)
No dia 5 de setembro comemoramos o Dia da Amazônia. Em meio a uma crise sem precedentes, em que a destruição é animada explicitamente pelo próprio poder público, a negação de dados científicos, a demonização infundada de grupos da academia e do terceiro setor – que há décadas se dedicam à proteção e uso responsável da Floresta Amazônica -, o desmonte dos órgãos ambientais e a intimidação dos funcionários públicos responsáveis pelo controle do desmatamento e das queimadas são indicadores de que ultrapassamos todos os limites do bom-senso e de uma conduta responsável de parte do governo brasileiro. O cenário é de efetivo descumprimento da própria Constituição Brasileira.
Estamos presenciando um agravamento da crise socioambiental global. Na contramão do bom-senso, os brasileiros têm dado sua contribuição. Esta semana ocorrerá na Assembleia Legislativa do Paraná mais uma reunião que procura abrir espaço para a volta do “manejo” da Floresta com Araucária no Estado. Independentemente da exaustão de um recurso madeireiro explorado de forma completamente extrativista e irracional no século passado, as pressões de madeireiros parecem ser ainda mais fortes do que a própria realidade. A inexistência de áreas representativas de remanescentes naturais demonstra não existir mais nenhuma condição para uma atividade econômica de madeira baseada na exploração nativa. Mesmo assim, a saga pela exploração até a última árvore parece prevalecer.
O comportamento irascível e ganancioso de alguns políticos e madeireiros paranaenses em nada difere do que ocorre em outros Estados da federação, onde ambientes naturais foram exauridos pela exploração inconsequente e imediatista. As frentes de desmatamento na Amazônia que hoje se repetem, mas com maior velocidade que a história da devastação ocorrida na Mata Atlântica, têm incorporado o mesmo perfil de atores envolvidos nesse processo. O ciclo continua alimentando a economia, visto que a madeira extraída no Norte do País ainda supre madeireiras em todo o Brasil. E passa pelos portos do sul: hoje estima-se que uma média de 20 caminhões de madeira passem por dia para serem exportados apenas pelo Porto de Paranaguá, no litoral do Paraná.
É falsa a premissa de que os planos de manejo florestal, formalmente licenciados por órgãos ambientais, proporcionaram uma racionalização na exploração de florestas nativas no Brasil. De fato, mesmo se houver um respeito estrito ao que estabelecem essas licenças de exploração, não existem quaisquer indicadores de conservação dentro do escopo que suporta a determinação da quantidade de corte de árvores numa determinada área. Trata-se basicamente de um cálculo de metros quadrados por hectare orientado por condicionante de viabilidade econômica.
Em complemento às inconsistências dessas ações estabelecidas legalmente, ressalta-se a constatação fática de que milhares de planos aprovados no sul do Brasil, apesar do compromisso dos exploradores em manter a floresta em pé – um condicionante dos planos de manejo florestal com espécies nativas – são desrespeitados sistematicamente. Essas florestas, em grande parte, não existem mais.
Na Amazônia, boa parte da exploração extrativista de madeira que é colocada em prática é completamente ilegal e sequer é acompanhada por processos de licenciamento. O roubo e a grilagem em terras públicas, também largamente praticados no século passado no sul do Brasil, são partes intrínsecas das práticas ilegais de atividades madeireiras em curso hoje na Amazônia. O que implica em ataques criminosos a Terras Indígenas e Unidades de Conservação, em larga escala.
A cultura do enriquecimento rápido com base no extrativismo predatório é uma marca registrada de nossa sociedade. Não há como fugir do reconhecimento de que esse tipo de prática é mais a regra do que a exceção. No caso da exploração de madeira, podemos perceber que ao longo dos anos ocorre um avanço contínuo em busca de novas fronteiras, fenômeno que reflete, inclusive, em países vizinhos. Uma enorme ação de destruição de áreas naturais foi desencadeada a partir da década de 80 no Paraguai, que perdeu a grande maioria de suas florestas nativas a partir de atividades desenvolvidas em parceria com madeireiros brasileiros. A maior proximidade das áreas no Paraguai com portos de exportação proporcionou um processo de desmatamento. E foi ainda mais célere do que o ocorrido décadas atrás no Paraná.
Na Amazônia, o conhecido “arco do desmatamento” nada mais é do que uma área geográfica que avança progressivamente para o interior, buscando madeira disponível com maior proximidade com as vias de escoamento. Os meritórios esforços de controle e fiscalização empreendidos de tempos em tempos permitiram em alguns momentos anúncios sobre a “diminuição” do desmatamento ilegal. E as mais otimistas metas governamentais estabelecidas pelo Brasil pretendem acabar com o “desmatamento ilegal” até 2030. O que pode ser facilmente percebido é que as próprias metas e indicadores usados para medir a qualidade dos esforços de contenção de ilícitos demonstram a enorme fragilidade existente.
Os descalabros contrários à proteção do meio ambiente que agridem o povo brasileiro no ano de 2019 têm como ator principal o próprio governo. De uma certa maneira, o destempero e a inconsistência dessas afirmações seguidas expõem de forma muito explícita como são as regras do jogo na prática – vivemos uma busca despudorada e imoral por ganhos rápidos em benefício de grupos políticos e econômicos, em desconsideração absoluta com o interesse público. Estamos num momento de extremos. De ataques diretos e muito mais expressivos. Mas nenhuma gestão pública ao longo da história pode ser identificada como convergente com uma agenda efetivamente consistente no campo ambiental.
Claramente ações de destruição da natureza representam um processo histórico, em que as ilegalidades, dentro do possível, são mantidas por debaixo dos panos. Extraordinariamente, um político de perfil extremo entende ser mais conveniente expressar explicitamente o que ele e seus apoiadores pretendem. Um fino alinhamento com as mesmas forças da economia que direcionam as políticas públicas no Brasil. Como consequência de suas práticas, assistimos a uma exacerbação exponencial das ações de degradação, a exemplo do desmatamento e dos incêndios encadeados no momento na Amazônia.
Segundo nota técnica do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (IPAM) de agosto de 2019, o incremento das queimadas na Amazônia segue o rastro do desmatamento. O documento reporta que “de 1º de janeiro a 14 de agosto, 32.728 focos foram registrados pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE) no bioma. Uma das hipóteses para explicar a alta em 2019 seria uma estiagem intensa, como a registrada em 2016. Mas ela não se confirmou: apesar da seca, há mais umidade na Amazônia hoje do que havia nos últimos três anos. Se a seca não explica as queimadas atuais, a retomada da derrubada da floresta faz isso. O fogo é normalmente usado para limpar o terreno depois do desmatamento, e a relação entre os dois fatores é positiva em uma análise entre os focos de calor e o registro de derrubada feito pelo Sistema de Alertas de Desmatamento (SAD)”.
Na atual conjuntura, impossível não haver uma ponderação que considere as tendências de nosso comportamento histórico algo irreversível. Que a destruição do patrimônio natural brasileiro, incluindo a Amazônia, é uma meta a ser cumprida dentro de um amplo processo de corrupção. Sua consecução representa tão somente uma questão de tempo. E que a visão medíocre que envolve atividades econômicas de alto impacto ambiental é a grande vencedora na queda de braço para direcionar o modelo de desenvolvimento que o Brasil elege como seu melhor caminho.
Cabe avaliar o que a sociedade está fazendo para que essas premissas não sejam efetivadas por completo em futuro muito próximo. Um deplorável tiro no pé que atinge não apenas a sociedade em geral. Preponderantemente perderão os grandes negócios que, com base na expectativa açodada de crescimento além dos limites e a qualquer custo, sofrerão as consequências de uma economia global com tendências cada vez menos direcionadas à visão ambiciosa e inconsequente com a qual convivemos por aqui. Toda essa agenda de degradação, em busca do lucro no curto prazo, em breve irá também proporcionar a comemoração do dia que ainda havia água no sudeste e sul do Brasil.